O antijesuitismo oitocentista e a expulsão dos jesuítas portugueses

Como ninguém ignora, os sórdidos palhaços

Compram, roubam às mães as loiras criancinhas,

Torcem-lhes o pescoço, as mãos, os pés, os braços,

Transformam-lhes num junco elástico as espinhas,

E exibem-nas depois nos palcos das barracas,

Dando saltos mortais e devorando facas

Ante o espanto imbecil da ingénua multidão;

E para lhes cobrir a lividez plangente

Costumam-lhes pintar carnavalescamente

Na face de alvaiade, um rir de vermelhão.

Também o jesuitismo hipócrita-romano,

Palhaço clerical, anda pelos caminhos

A comprar, a furtar, assim como um cigano,

As crianças às mães, os rouxinóis aos ninhos.

Abílio Guerra Junqueiro, “Como se faz um monstro”,

A velhice do padre eterno, Livraria Minerva, Porto, 1885, pp. 65-69.

A oposição à Companhia de Jesus no final do século XIX assumiu várias formas e teve uma grande representação popular. Neste período, além da publicação de poemas como o de Guerra Junqueiro (1850-1923), em que os jesuítas são apresentados como “sórdidos palhaços” que roubam as crianças às suas mães, levando-as para o “negro seminário” e transformando-as “num pássaro nocturno estúpido e sincero”, foram também organizados comícios e publicados diversos livros e periódicos exclusivamente dedicados ao antijesuitismo.

Dos opositores da Companhia de Jesus no final do século XIX, e início do século XX, há que destacar Manuel Borges Grainha (1862-1925) que, curiosamente, chegou a ingressar no Noviciado do Barro a 10 de Outubro de 1877, tendo saído da Companhia pouco tempo depois. Borges Grainha publicou a História da Franco-Maçonaria em Portugal (1733-1912), Os jesuítas e as Congregações Religiosas em Portugal nos Últimos Trinta Annos e O Portugal Jesuita. Foi ainda o responsável pela tradução e comentário da História do Colégio de Campolide da Companhia de Jesus em Lisboa e pela tradução do Catálogo da Província Portuguesa da Companhia de Jesus no começo do ano de 1910. Inspirado nas campanha pombalina, e apropriando-se do conceito de que os jesuítas eram incultos e contrários ao progresso científico, Grainha afirmava categoricamente que os jesuítas já não eram “sábios” no século XVIII e que não o eram também no século XIX, apesar de o poderem ter sido nos séculos XVI e XVII. Em 1914, chegou a apresentar no Porto uma comunicação no Congresso Maçónico Nacional intitulada “A Acção da Maçonaria Portuguesa”, onde descreveu a importância do papel, que a Maçonaria teria tido no desenvolvimento da liberdade religiosa, na laicização da instrução escolar, na implantação da República e na expulsão da Companhia de Jesus e das congregações, destacando a acção dos maçons Afonso Costa, António José de Almeida, Cândido dos Reis (1852-1910), Miguel Bombarda (1851-1910) e Machado Santos (1875-1921). Neste congresso foi determinado que o dever da Maçonaria portuguesa era “ser uma sentinela vigilante contra a reentrada e restabelecimento dos jesuítas e de todos os mais congreganistas e contra as tentativas clericais tendentes a diminuir a supremacia do Estado sobre as Igrejas”, pelo que se tomaram diligências no sentido de se constituírem comissões em cada Loja, com a função de “receber essas informações, estudá-las, procurar e promover os meios de evitar os factos que se dêem contrário às leis anticongreganistas e separatista”. Estas medidas e a clara intenção de Borges Grainha de reivindicar um papel central para a Maçonaria na implantação da República e extinção das ordens religiosas, mostram o destaque que ainda era dado à questão religiosa e, mais concretamente, à questão da presença da Companhia de Jesus em 1914.

No prólogo à História do Colégio de Campolide, e com uma agenda clara de destruir a reputação científica e literária que os jesuítas tinham vindo a recuperar em finais do século XIX, Grainha apresentava os jesuítas como clérigos obcecados com o poder e vocacionados para o controlo da sociedade. Na sua visão, a Companhia de Jesus controlava a nobreza e a burguesia através da educação nos colégios, particularmente no Colégio de Campolide, enquanto que o povo era iludido através das missões e do temor a Deus. Um argumento recorrentemente utilizado ao longo deste prólogo, e uma das razões pelas quais se justificava, na sua opinião, a expulsão dos jesuítas dos territórios portugueses.

Para Borges Grainha, o facto de D. Luís Filipe e D. Manuel de Bragança terem presidido à sessão solene da academia de Campolide, no dia 16 de Março de 1905, representava um exemplo flagrante da relação perniciosa entre a nobreza e os jesuítas. Por esta razão, incluiu no prefácio à História do Colégio de Campolide a fotografia da recepção aos príncipes que mostrava, na sua opinião, que os jesuítas “estavam dando aos académicos, que presenciavam tal scena, uma educação mais de Archeiros da Casa Rial do que de gente instruída, nobre e altiva: nela se vêem professores idosos beijando, servilmente quási de joelhos, as mãos de duas crianças ignorantes, só porque eram da Família Rial”.

Visita Campolide

Figura 1 – D. Luís Filipe e D. Manuel de Bragança em visita ao Colégio de Campolide, por ocasião da sessão solene da academia científica, 16 de Março de 1905. Arquivo Português da Companhia de jesus.

Este antijesuitismo, como argumentou António Araújo, era ainda fruto da campanha pombalina, uma tese que pode ser totalmente apoiada no conteúdo dos debates parlamentares da Monarquia Constitucional, especialmente entre 1882 e 1910. Em 1882, a propósito do centenário de Sebastião José de Carvalho e Melo e da construção da sua estátua em bronze, discutia-se na Câmara dos Deputados que o maior feito do Conde de Oeiras tinha sido o de desembaraçar Portugal dos jesuítas e que por isso lhe era conferido o título de “libertador do reino e do rei”. Nas palavras de António da Cunha Belém (1824-1905), a expulsão da Companhia de Jesus e a reforma educativa que se seguiu tinham sido os contributos mais importantes do Conde de Oeiras e pelos quais Sebastião José deveria ser “santificado”:

Assim como elles vão no dia 31 de julho resar na igreja de Santo Ignacio de Loyola, deixem-nos ir a 8 de maio resar a S. Sebastião José de Carvalho e Mello, no altar da patria, no templo da liberdade; deixem-nos santificar esse vulto, deixem-nos affirmar aqui ao menos, de cabeça erguida, que na celebração do centenario ao marquez de Pombal vae tambem alguma affirmação de que veneramos n’elle o grande estadista que expulsou os jesuitas, porque essa expulsão foi incontestavelmente um passo dado no caminho da liberdade. (Apoiados.)

Cunha Belém atribuía a Pombal “ a reforma do ensino e o têl-o arrancado das mãos e da influencia do clero”, o que tinha possibilitado, na sua visão, que “a rasão podesse fazer as suas affirmações escriptas ou falladas”, sem qualquer influência do “poder ecclesiastico”.

Entre 1881 e 1891, deputados como Rodrigues de Freitas (1840-1896), Anselmo Braancamp (1849-1921), José Luciano de Castro (1834-1914) e Tomás Ribeiro (1831-1901), pronunciaram-se repetidamente contra a presença ilegal da Companhia de Jesus em Louriçal do Campo, pedindo que fossem tomadas as medidas necessárias para se proceder à extinção do Colégio de São Fiel (1863-1910). Estes discursos parlamentares foram motivados pela publicação de um relatório sobre o Colégio de São Fiel, redigido por Joaquim Augusto de Sousa Refóios (1853-1905) em 1883, três anos após expedição de uma portaria circular por José Luciano de Castro que exigia aos Governadores Civis informações sobre a existência de escolas ou estabelecimentos de ensino que pertencessem a congregações religiosas estrangeiras. Neste relatório, Sousa Refóios afirmava que a maior parte das familias que mandavam os seus filhos para São Fiel faziam-no “esperando que lhes será facil apagar n’elles, á sua sahida do collegio, os vestigios da direcção jesuitica, aproveitando-lhes tão somente o ensino litterario e scientifico”. Apesar de reconhecer que já em 1880 existia um gabinete de física e um laboratório químico e que o ensino das línguas era “razoável”, Sousa Refóios considerava que o ensino da Filosofia e, principalmente o ensino da História, eram reaccionários. Concluía que São Fiel era um colégio da Companhia de Jesus cujos danos sociais não eram desprezáveis, atribuindo aos jesuítas de Louriçal do Campo a responsabilidade pela quebra de laços familiares e pela fanatização dos alunos e suas famílias.

A propósito da execução da Concordata de 1857, assinada por D. Pedro V e pelo Papa Pio IX, o Marquês de Rio Maior, D. António Saldanha de Oliveira e Sousa (1836-1891), defendia, em Junho de 1887, a concessão da existência oficial às congregações religiosas em Portugal, sem que fosse necessário recorrer a estratagemas. De acordo com um despacho que Andrade Corvo (1824-1890) enviara ao Conde de Tomar (1803-1899) a 7 de Dezembro de 1875, as congregações e associações religiosas poderiam assegurar a sua existência civil em Portugal, ao abrigo da protecção inglesa. Simulando as vendas do Colégio de Campolide, da Residência do Quelhas e do Colégio de São Fiel a jesuítas ingleses, a Companhia assegurava, desta forma, a sua existência oficial em Portugal.

Para o Marquês de Rio Maior a existência de colégios jesuítas em Portugal não só deveria ser reconhecida como era também necessário que o antijesuítismo deixasse de ser um bastião do anticlericalismo oitocentista dado que os filhos dos “homens mais distinctos d’este paiz” eram educados nos colégios da Companhia e que o ensino era permitido aos jesuítas, sob a protecção britânica, como tinha sido promulgado no despacho de 1875:

Eu comprehendo, sr. presidente, que os que julgam os jesuitas prejudiciaes á educação não mandem lá seus filhos, mas não entendo que o façam aquelles que os atacam. Este procedimento não é correcto. (…) As leis do marquez de Pombal não podem obrigal-os a sair do reino, ha lei mais moderna que os protege e defende. Aos jesuitas habilitados como professores, é-lhes livre o ensino, como a quaesquer outros mestres.

Tal como o Marquês de Rio Maior, Tomás Ribeiro reconhecia também, em 1891, que os principais opositores da Companhia de Jesus mandavam educar os seus filhos nos seus colégios, afirmando que em Portugal se vivia “d’estas mentiras constantes, fazendo em nossas casas o contrario do que dizemos no parlamento ou escrevemos na imprensa”. Um exemplo interessante, nesta história, é o de Alfredo Keil (1850-1907). Apesar de ser maçon desde 1893, Keil reconhecia que a melhor instituição de ensino secundário em Portugal era o Colégio de Campolide, onde, aliás, estudava o seu filho. Esta poderá sido a principal razão pela qual compôs o hino deste colégio, que foi cantado pela primeira vez na distribuição de prémio de 1895 “por um numeroso côro de alumnos com acompanhamento de grande orchestra escolhida ao gosto do compositor”.

Entre 1907 e 1910, deputados como Afonso Costa, Miguel Bombarda e António José de Almeida retomavam os discursos do final do século XIX e pronunciavam-se contra a presença da Companhia de Jesus, que consideravam ser uma clara violação das leis de Pombal e das leis anti-congreganistas de 1834, apesar das leis de Hintze Ribeiro (1849-1907) que tinham regularizado a situação das congregações religiosas em Portugal, em 1901. António José de Almeida assegurava que a educação pública começara apenas com a expulsão dos jesuítas, enquanto que Miguel Bombarda advertia sobre a necessidade de proteger as crianças da iniquidade da Companhia de Jesus. Afonso Costa, por seu lado, chegou a propor por duas vezes (Julho de 1908; Julho de 1909) que se promulgasse uma lei que extinguisse a Companhia de Jesus e os seus colégios, algo que só se viria a verificar com o decreto de 8 de Outubro de 1910, que restabelecia as leis de Pombal e de Joaquim António de Aguiar.

Em 1910, Pedro Ferrão recuperava as teses de Sousa Refóios sobre os jesuítas , parafraseando-o no introdução ao seu livro sobre o Colégio de São Fiel:

Muitas famílias, livres já de preconceitos e até acentuadamente anti jesuiticas, mandam os seus filhos para o collegio de S. Fiel, esperando que lhes será fácil apagar nelles, á sua sahida do collegio, os vestígios da direcção deletéria e disseolvente que alli lhes imprimem, aproveitando-lhes tão somente o ensino litterario e scientifico.

Um dos acontecimentos que mais exasperava Pedro Ferrão era assistir, na semana anterior ao Domingo de Ramos, “á entrada de centenares de individuos ingenuos, corações simples e bons, mas completamente embrutecidos e bestializados pelos padres jesuitas!”. Para a generalidade dos críticos anticlericais, um dos principais malefícios dos jesuítas decorria do temor provocado pelos “sermões terroristas” nestas celebrações, um medo que causava “tanta impressão no cerebro fraco das mulheres” que fazia “muitas doidas, possessas, freiras!”. Ferrão criticava ainda os jesuítas de São Fiel no que dizia respeito às esmolas, que só seriam meritórias se não fossem “encargo de uma herança importantissima de muitas dezenas de contos de réis, que, por obra e graça do Espirito Santo, aprouve ao falecido Pedro de Pina Freire Falcão de Castello Branco, legar-lhes”. Na sua opinião, a elevada percentagem de doidos, “degenerados, mentecaptos, idiotas, todos com a monomania religiosa” na região devia-se à “escravidão de consciencias e dos efeitos perniciosissimos dos sermões terroristas com que os jesuitas tresvariam os cerebros fracos das mulheres”, pelo que considerava uma obrigação patriótica “arrancar este desgraçado povo ás garras aduncas e fataes dos jesuitas”.

Na visão de Pedro Ferrão, os reitores de São Fiel eram homens desabridos, impetuosos ou dissimulados. O único reitor de São Fiel que escapava a estas críticas era o P. António Cordeiro, considerado como “um ponto branco naquela pasta negra”. Retomando as críticas habituais que se faziam neste período, apresentava os jesuítas como homens ambiciosos e sem escrúpulos, cujo único objectivo de vida seria dominar:

O jesuita é essencialmente ambicioso: a sua unica preoccupação é dominar. Para alcançar esse desideratum, tudo põe em pratica: renega todos os ideiais, ultrapassa todos os obstaculos, abandona todos os sentimentos de pundonor e de dignidade; o que elle nunca abandona são as conveniencias.

A edificação de um monumento a Nossa Senhora, por acasião dos 50 anos da proclamação do dogma da Imaculada Conceição, foi também altamente censurada por Ferrão, que considerava que os jesuítas de São Fiel estavam a explorar desta forma a devoção a Maria:

Os jesuitas souberam sempre explorar entre o povo ingenuo a devoção á Virgem, apresentando a como Mãe carinhosa, porque conhecendo demais a psychologia humana, sabem que nenhum ente nos é tão sympathico como a propria Mãe.

 

Para Ferrão, o juízo de que os colégios da Companhia de Jesus representavam as melhores instituições de ensino no nosso país era um juízo falso que ou tinha uma base ideológica, ou derivada da ignorância dos seus interlocutores:

Seja devido ao fanatismo jesuitico, já por falso ou superficial conhecimento da materia, muita gente considera os jesuitas sábios e os seus collegios os melhores estabelecimentos de ensino. Taes affirmações são gratuitas e erroneas.

Na sua opinião, os bons professores eram escassos em São Fiel, sendo que os que considerava competentes eram-no por serem “bastante intelligentes ou da naturalidade das linguas” que ensinavam. Entre os professores que recordava “com saudade” estavam o P. Luís Gonzaga de Azevedo e o P. Valério Aleixo Cordeiro, director da academia científica de São Fiel: “caracteres probos e honestos, jesuitas simplesmente de nome”. Por outro lado, os pedagogos mais criticados foram José Simas S.J. (1884-1970), professor de desenho, pela sua inabilidade para ensinar matemática e Manuel Martins S.J. (1858-1940) pela sua “excessiva ingenuidade”. Estas críticas ao ensino de São Fiel, baseadas na aptidão dos professores, representavam, sobretudo, a continuação das acusações de Sousa Refóios, que tencionava impedir que os jesuítas continuassem a ensinar por não possuírem habilitação oficial. Esta acusação fora rebatida em 1883 por António Mendes Lages S.J. (1838-1908), que considerava que o mais importante não era a habilitação oficial, que não era legalmente requerida, mas antes a aptidão real dos professores:

Ninguém ignora que a palavra habilitação, tratando-se de professores, se toma, sobre tudo, em dois sentidos. Diz-se habilitado para ensinar um individuo que sabe a materia que ensina ou quer ensinar, embora não tenha nunca feito legalmente exame d’ella; e diz-se habilitado, quando, quer saiba quer não saiba a materia, possue um diploma legal que o auctorisa a ensinar. Não havendo actualmente nenhuma prescripção da lei que obrigue os professores a se habilitarem n’este ultimo sentido, não é indecoroso ao director de um estabelecimento litterario ignorar os exames legaes feitos pelos professores do mesmo ou os seus diplomas, com tanto que saiba, ainda que seja só por informação de pessoa de confiança, que estão habilitados no primeiro sentido da palavra.

Por ter passado seis meses pelo Noviciado do Barro, Pedro Ferrão pretendia, no seu livro sobre a educação jesuítica, “levantar uma pontinha do espesso reposteiro que esconde aos profanos os mysterios da iniciação, pois jamais olvidarei aquellas scenas que profundamente se gravaram na minha imaginação ainda creança”. Depois de comparar a entrada no noviciado à iniciação maçónica, Ferrão acusava ainda os jesuítas de ameaçarem com excomunhão quem revelasse os supostos segredos da Companhia de Jesus:

Os jesuitas verberam e troçam a maçonaria por ser uma sociededade secreta e adoptar umas ridicularias na iniciação aos respectivos graus: mas se elles ainda são mais ridiculos e divertidos com os pobres moços, fazendo toda a casta de judiarias e envolvendo tudo no mais completo segredo sob pena das mais violentas penas espirituaes! Porque deve-se notar, que quem divulga o que se passa portas a dentro do noviciado incorre, entre outras penas, na de excommunhão maior, pena fulminada por um santissimo padre.(…) É que o segredo é a alma do negocio!

Além das acusações de secretismo, hipocrisia, terror, ambição, alienação dos jovens às suas famílias e de iliteracia dirigidas somente aos jesuítas, criticava também directamente as práticas católicas, nomeadamente a confissão, que considerava ser “a peor arma que lá manejam”. Para Ferrão, a influência clerical e, mais concretamente, a influência da Companhia de Jesus na educação das crianças era extremamente nociva, e era responsável pela formação de jovens retraídos, desconfiados e hipócritas:

A educação jesuitica funda-se na delação e no terror. Não admira, portanto, que um alumno dum collegio jesuitico seja retrahido, desconfiado e hypocritca. E, infelizmente, mesmo depois de uma aturada e profunda reacção em meios completamente differentes, sempre nos ressentimos da educação que nos foi ministrada.

A expulsão dos jesuítas portugueses

Na manhã de 5 de Outubro de 1910, o Colégio de Campolide (1858-1910) foi bombardeado e invadido por militares numa pesquisa infrutífera por armas de fogo e material explosivo. Ao longo dessa manhã, quebraram-se as vitrines do Museu de História Natural, rasgaram-se retratos, inutilizaram-se instrumentos científicos e roubaram-se livros raros da biblioteca, perdendo-se um legado educativo e científico que levara cinquenta anos a construir. Prevendo os acontecimentos de dia 5, e na sequência dos bombardeios na tarde de 4 de Outubro, um grupo de quinze jesuítas abandonara o Colégio em direcção à estação de comboios de Campolide. Neste grupo estava o P. Carlos Zimmermann S.J. (1871-1950), que sofreu dois atentados no caminho para a estação de comboios, onde foi depois ameçado e assaltado por um revolucionário.

Figura 2 - António Maria Alves S.J. e Afonso Costa na prisão de Caxias, 13 de Outubro de 1910. Arquivo da Brotéria.

Figura 2 – António Maria Alves S.J. e Afonso Costa na prisão de Caxias, 13 de Outubro de 1910. Arquivo da Brotéria.

Os acontecimentos de 4 e 5 de Outubro em Lisboa, e os que se lhes sucederam em Val do Rosal, Setúbal, Barro e Louriçal do Campo, e que terminaram na prisão e posterior exílio dos jesuítas portugueses, representam o culminar do anticlericalismo oitocentista português em que os jesuítas eram acusados de promover a destruição da família e de serem decadentes, manipuladores e os principais responsáveis pelo atraso científico e educativo no nosso país.

No seguimento do decreto de 8 de Outubro de 1910, em que as congregações religiosas foram extintas e se restabeleceram as leis de Pombal e de Joaquim António de Aguiar (1792-1884), os bens da Companhia de Jesus, tanto móveis como imóveis, foram “desde logo declarados pertença do Estado”, sem sequer se proceder a qualquer avaliação ou inventariação, ao contrário dos bens das outras congregações religiosas. Esta primeira medida da República Portuguesa, revelava o tratamento de excepção que Teófilo Braga (1843-1924), António José de Almeida (1866-1929), Afonso Costa (1871-1937), e Bernardino Machado (1851-1944) pretendiam aplicar aos jesuítas.

Nos primeiros anos da República, a legislação em torno da matéria religiosa não se confinou apenas à expulsão e extinção das congregações. Até ao final de 1910 foram laicizados os feriados religiosos, abolido o juramento religioso em tribunal e na universidade, extinto o ensino da doutrina cristã nas escolas primárias, instituído o divórcio, suprimida a cadeira de direito eclesiástico português e instituído o casamento civil como o único válido perante o Estado. Esta série de decretos relacionados com o ensino e as práticas católicas culminaram na promulgação da célebre Lei de Separação da Igreja e do Estado, no dia 20 de Abril de 1911.

Frenologia

Figura 3 – Medições frenológicas de António Maria Alves na prisão de Caixas, Outubro de 1910 Arquivo da Brotéria.

Após a implantação da República e publicação do decreto de 8 de Outubro, os jesuítas capturados pelo Governo Provisório da República Portuguesa foram enviados para as prisões do Limoeiro (28 detidos) e de Caxias (106 detidos) onde permaneceram, na sua grande maioria, até ao início de Novembro de 1910. Depois de uma série de interrogatórios, António Maria Alves S.J. (1866-1941), reitor do Noviciado do Barro, chegou, inclusivamente, a ser interpelado pelo próprio Ministro da Justiça, Afonso Costa, no dia 13 de Outubro, num diálogo em que foram centrais as acusações de alienação das crianças às suas famílias, de fanatismo e da sujeição dos noviços à privação de alimentos por dias consecutivos. Também Afonso Luisier S.J. (1872-1957), professor do Colégio de Campolide, foi interrogado, a 14 de Outubro, por Afonso Costa sobre a existência de explosivos em Campolide, tendo sido nesse mesmo dia libertado e exilado para Madrid, por intervenção do cônsul suíço. Na sequência destes interrogatórios, os presos do Limoeiro foram sujeitos a medições antropométricas nos dias 20 e 21 de Outubro, enquanto que na prisão de Caxias as medições frenológicas tiveram início no dia 22.

Figura 4 - Os jesuítas em Portugal, adaptado de Illustração Portugueza, N. 246, 1910, pp. 582-588.

Figura 4 – Os jesuítas em Portugal, adaptado de Illustração Portugueza, N. 246, 1910, pp. 582-588.

Para o P. António Maria Alves, estas medições representaram “a maior affronta” pela qual passaram os jesuítas portugueses pela sujeição a um tratamento que, nas suas palavras, estava destinado a “malfeitores”. As humilhações a que os jesuítas portugueses estiveram submetidos em Caxias e no Limoeiro só terminaram a 3 de Novembro de 1910, quando embarcaram no Bürgermeister os que ainda não tinham sido expatriados pela República Portuguesa. Para Luís Gonzaga de Azevedo S.J. (1867-1930), ficava a memória de uma “horrenda despedida”:

Imaginem boa parte da Praça do Commercio, de noite, convertida numa extensa jaula de feras a rugir; terão uma ideia pálida do que foi aquillo. Elles tripudiavam, elles uivavam, elles batiam palmas, elles gritavam furiosamente: morra! elles blasfemavam, elles davam pontapés a quem podiam, elles berravam as mais hediondas obscenidades. E depois de embarcados, depois de começar a mover-se a lancha a vapôr, ainda ouviamos ecos prolongados d’aquella horrenda despedida.

Leituras complementares:

https://www.academia.edu/1632502/Jesu%C3%ADtas_e_Ciência_em_Portugal._V_-_Os_Colégios_de_Campolide_e_de_São_Fiel_e_a_implantação_da_República