O politique d´abord, ou política em primeiro lugar, é uma fórmula maurrasiana que gerou muita controvérsia e não poucos equívocos. Interpretada em forma estrita como a primazia da política sobre a moral, serviu de fundamento para o progressismo católico obter a condenação da Action française por Pio XI em 1926. E é certo que mesmo em círculos afins à escola de pensamento do mestre provençal, houve quem repudiasse tal palavra de ordem. Como sair deste imbróglio conceptual? Nada melhor do que mergulhar no pensamento do próprio Maurras para perceber o que ele queria realmente entendia por politique d´abord.
Para já o filósofo de Martigues é um organicista. Recorre às ciências da natureza e da vida para encontrar certas analogias fundamentais, provisórias umas, permanentes outras. É com recurso à biologia que a ciência politica capta, ainda que com meios que lhe são próprios, “a essência da herança política, da selecção política, da continuidade política”. Se Maurras não chegar a afirmar, como faz Comte – um dos seus mestres –, que a “política é filha da biologia”, crê que entre ambas existem analogias consideráveis que derivam, precisamente, do facto de o ser social, o homem, como ser vivo, estar sujeito às leis da vida. Desta forma, longe de ser uma disputa entre partidos e facções, ou o movimento anárquico das paixões, a liberdade ilimitada dos indivíduos proclamados iguais, o império das abstracções ou o permanente embate entre ideologias, a politica, para Maurras “é a ciência e a arte da vida dos Estados”, é “a ciência e as condições da vida próspera das comunidades”, é “a ciência da sua natureza e das suas leis”. E entende que tais leis não são criadas pelos homens, sendo “anteriores e superiores” às suas vontades. Independentes, pois, da vontade humana, estas leis tampouco possuem um carácter universal e devem ser descobertas e extraídas na natureza “dos lugares, dos tempos, dos Estados”.
Em resumidas contas, a política, que é ciência e é arte em simultâneo, é um meio para a realização do bem comum, para assegurar a prosperidade do agregado social. E de todos os meios possíveis para uma tal empresa, Maurras está convencido de que a política é o meio que urge empregar antes de qualquer outro – politica em primeiro lugar, politique d´abord. Para ele está claro que está a dar expressão a um princípio não só básico mas lógico e que vem a ser o da prioridade – não a primazia! – do meio político sobre todos os demais meios humanos. Nunca lhe pareceu necessário estender-se demasiado na explicitação de um tal conceito, nem mesmo quando confrontado com uma enxurrada de críticas indignadas. Por exemplo, nas trezentas e setenta e oito páginas de Mes Idées Politiques, volume dado à estampa em 1937 com uma selecção de textos escritos entre 1914-1918, apenas um curto parágrafo está dedicado a explicar o significado de politique d´abord:
Quando dizemos “política antes de tudo”, dizemos: a política primeiro, primeiro na ordem do tempo, de nenhuma maneira na ordem da dignidade. É tanto como dizer que o caminho deve ser empreendido antes de se chegar ao seu ponto final; a flecha e o arco devem ser tomados antes de se atingir o alvo; o meio de acção precederá sempre o centro de destino.
Durante a acirrada polémica entre a Action française e os católicos demo-liberais, Maurras sai em defesa do princípio da prioridade da acção política:
A relha que penetra e lavra a terra tem mais importância para a obra da lavra do que o boi cujo ofício não é mais do que puxar o arado e, contudo, é o boi que vai à frente e não é possível inverter-se esta classificação natural com o pretexto de que ela dá testemunho de uma relação insuficiente da importância e da utilidade da relha. O boi está para a relha, ele passa, em consequência, antes da relha, como o meio para se chegar a um fim é utilizado antes de se estar neste fim.
E tomando emprestado à filosofia escolástica “um aforismo que se assemelha bastante a esta parábola de bom senso e de senso comum”, parafraseia a Santo Tomás: Finis est prior in intentione, sed est posterior in executione. O fim é anterior na intenção, mas posterior na execução (Summa theologica, prima secunda, q. XX, art. I, ad 2um).
Santa Joana d´Arc e a Guerra dos Cem Anos são evocados por Maurras como o ejemplo supremo da aplicação do politique d´abord. Convocada para cumprir o seu dever desde o religioso – “sua missão vem do céu” –, seu objectivo é, porém, nacional: a liberação total do território francês da ocupação inglesa. O mestre contra-revolucionário sustenta que ao dirigir-se primeiramente, em pleno conflito bélico e crisis dinástica, ao futuro Carlos VII para conduzi-lo a Reims e vê-lo coroado, a Santa guerreira demostrou perceber que para restaurar a ordem era necessário uma autoridade. E esta, no caso de França, somente poderia ser o Rei. É numa Nação dividida em facções, invadida e desmembrada pelo inimigo estrangeiro, que a Virgem de Orleães começa por bater-se por um Rei que reine e governe de acordo com as tradições e para os interesses da Nação, pelo comando de um só para por cobro às divisões e competições. “Rei em primeiro lugar” seria a sua palabra de ordem: primeiro consolidar a base política, em seguida dedicar-se às operações militares. Para Maurras está claro que a atitude de Santa Joana, ao priorizar o político na ordem da execução, corresponde precisamente ao princípio subjacente ao politique d´abord.
Quando diz politique d´abord quer dizer que a acção política tem uma prioridade exclusivamente cronológica: os meios precedem o fim, o caminho precede o ponto de chegada:
Não se constroem hospitais, escolas e oficinas num lugar onde cai uma obus a cada minuto. Antes de os construir é necessário assentar o canhão, tomar a metralhadora, destruir o instrumento de destruição. Se o destruidor chama-se Estado democrático e republicano, é mister destruir esta Democracia e esta República. É impossível fazer algo duradouro omitindo-se esta precaução: Política antes de tudo!
Maurras enfatiza que, ao contrário do que pretendem os críticos, tal aforismo não traduz um princípio universal ou absoluto, mas que a sua aplicação depende das condições de tempo e lugar, da situação moral e social de determinada sociedade. Da observação das contingências históricas da Nação francesa conclui que o primeiro que se deve fazer é liberar o país “deste aparelho de destruição que se chama a acção política da República democrática”. E tal objectivo só pode ser atingido – sempre de acordo com as circunstâncias próprias da França – através da acção da monarquia.
Como apropriadamente entendeu Jean Madiran, se na sua “formulação didáctica” o politique d´abord parece absoluto ou dogmático, na realidade não pode ser entendido como “a regra única e permanente da ordem de urgência”, já que na observação dos factos concretos e na formulação de juízo prático Maurras sempre demonstrou uma claríssima percepção da”interdependência das causas”. Se defende o princípio da prioridade da acção política é porque as “observações contingentes” que fornece a História francesa confirmam-se neste sentido, ou seja, correspondem “ao que foi e ao que é”. Se as observações não se tivessem confirmado, se outras tivesse sido a trajectória histórica, se os acontecimentos tivessem sido orientados em diverso rumo, Maurras não teria tido nenhum problema em guiar-se segundo outro princípio:
Em outro lugar, em outro tempo pode-se começar por outra coisa. Aqui, em nossos dias, é necessário passar primeiro pela acção política, nenhuma outra [acção] pode ser suportada sem aquela.
É certo que no caso específico de França o mestre provençal considera a monarquia como o meio necessário para a ordem, o progresso e, em consequência, para todas as reformas reais. Ordem social, ordem nacional, ordem económica e moral: em primeiro lugar impõe-se restaurar a monarquia, um rei que reine e governe. Maurras insiste neste ordem particular dos factores e entende que, se a ordem e a conservação, o progresso e as reformas, a satisfação dos trabalhadores e as necessidades gerais da produção, pudessem ser realizados em democracia republicana, então não haveria necessidade de monarquia – esta não seria mais do que “um ornamento inútil, parasitário e custoso”. A ordem dos factores é fundamental: em primeiro lugar urge operar a transformação real do político para, a seguir, avançar com a reforma real do social. E a transformação real do político consiste na eliminação da democracia e na restauração monárquica. A acção para Maurras é política, logo, politique d´abord.
Podemos resumir e concluir com Jean Madiran, ao desdobrar a máxima maurrasiana em três significados conexos: Por Politique d´abord entendamos: 1) Uma prioridade relativa do político sobre o militar, o económico e o social; 2) Uma prioridade geral do político sobre o moral, isto é, a prioridade do meio (político) sobre o objectivo (moral), de forma que a acção política protege e favorece a vida religiosa; 3) Especialmente uma prioridade da reforma política (mudança de regime institucional) sobre a restauração moral (reforma dos costumes), com a primeira tornando possível a segunda ou sendo a sua causa.